O Verdadeiro e o Falso Self
O Verdadeiro e o Falso Self
Uma das explicações mais surpreendentes e impactantes, sobre o porquê de nós como adultos, podermos ter problemas psicológicos, está ligada ao facto de nos nossos primeiros anos nos ter sido negada a possibilidade de sermos plenamente nós mesmos.
Ou seja, não foi permitido sermos obstinados e difíceis; não pudemos ser suficientemente exigentes, agressivos, intolerantes e egoístas como precisávamos ser.
Como os nossos cuidadores estavam demasiado preocupados ou afectados com algo, foi naturalmente necessário ajustarmo-nos a eles, sentindo que era preciso agir de acordo para sermos aceites e amados.
Um desenvolvimento saudável requer que possamos experimentar o incomensurável luxo de um período em que não precisamos de nos preocupar com os sentimentos e opiniões daqueles que cuidam de nós.
Fomos “obrigados” a ser Falso Self antes de termos tido a possibilidade de nos sentirmos verdadeiramente vivos – Self Verdadeiro.
E, como resultado, muitos anos depois, sem entendermos muito bem como, corremos o risco de nos sentirmos pouco consistentes, frágeis internamente, e, de alguma forma, relativamente ausentes.
A teoria do Verdadeiro e Falso Self resulta do trabalho de um dos maiores pensadores do século XX, o pedopsiquiatra e psicanalista inglês Donald Winnicott.
Numa série de trabalhos dos anos sessenta e com base em observações cuidadas dos seus pacientes (adultos e crianças), Winnicott desenvolveu a tese de que um desenvolvimento saudável requer que, invariavelmente, possamos experimentar o incomensurável luxo de um período em que não precisamos de nos preocupar com os sentimentos e opiniões daqueles que cuidam de nós.
Podemos ser inteiramente e, sem qualquer sentimento de culpa, o nosso Verdadeiro Self, porque aqueles que nos rodeiam – durante um período – adaptam-se inteiramente às nossas necessidades e desejos, por mais inconvenientes e difíceis que estes possam ser.
O verdadeiro Eu do bebé, na formulação de Winnicott, é, por natureza, associal e amoral. Não está muito interessado nos sentimentos dos outros.
O bebé grita quando precisa – mesmo a meio da noite ou num comboio cheio de passageiros.
Pode ser agressivo, mordendo e – aos olhos de um apreciador simpatizante das boas maneiras ou apreciador da higiene – chocante e um pouco nojento. Expressa-se onde e como quer.
Pode ser doce, é claro, mas nos seus próprios termos, e não para atrair ou regatear o amor.
Se uma pessoa tem sensação de se sentir autêntico como adulto, então deve ter desfrutado o imenso privilégio emocional de ter sido verdadeiro à sua maneira: exigir das pessoas a seu belo prazer, pontapear quando está com raiva, gritar quando está cansada, morder quando se sente irritada.
O verdadeiro Eu da criança deve ter a possibilidade de fantasiar destruir os pais quando está em fúria – e depois testemunhar que o pai sobreviveu; o que garante à criança um sentido vital e imensamente reconfortante de que não é de facto omnipotente, e que o mundo não colapsa perante os seus desejos destrutivos.
Quando as coisas correm bem, de forma gradual e voluntária, a criança desenvolve um Falso Self – capacidade de se comportar de acordo com as exigências da realidade externa.
Isto é o que permite que uma criança se submeta às regras da escola, se torne adulto e tenha uma vida profissional.
Quando nos foi dada a possibilidade de ser Verdadeiro Self, não precisamos de nos insurgir e manifestar as nossas necessidades constantemente.
Podemos seguir as regras porque, durante algum tempo, conseguimos ignorá-las inteiramente.
Infelizmente, muitos de nós não tivemos o começo ideal.
Talvez a nossa mãe estivesse deprimida e o pai frequentemente irritado, talvez houvesse um irmão mais velho ou mais novo a viver uma crise e exigisse toda a atenção.
O resultado foi termos aprendido a cumprir cedo demais, e assim, tornado obedientes às custas da nossa autenticidade.
Nos relacionamentos podemos ser polidos e norteados para as necessidades dos nossos parceiros, mas não somos capazes de amar adequadamente.
No trabalho, podemos ser cumpridores, mas pouco criativos e originais.
Nestas circunstâncias, e esta é a sua genialidade, a psicoterapia oferece-nos uma segunda oportunidade.
Nas mãos de um bom terapeuta é-nos permitido a regredir até ao momento em que começámos a ser Falso Self.
Na sala do psicoterapeuta, contidos em segurança pela sua circunspeção, podemos aprender – mais uma vez – a sermos autênticos.
Podemos ser excessivos, difíceis, despreocupados, egoístas, agressivos, chocantes e irascíveis.
O terapeuta irá aceitar-nos – e, assim, ajudar-nos a experimentar uma nova sensação de vitalidade, que deveria ter lá estado desde o princípio.
A exigência de ser Falso Self, nunca desaparece, mas torna-se mais suportável, porque regularmente nos permitem, na privacidade da sala do terapeuta, uma vez por semana ou mais, ser Verdadeiro Self.
Winnicott era extremamente calmo e generoso com os seus pacientes quando eles estavam a tentar reviver o seu Verdadeiro Self.
Um deles partiu o seu jarrão favorito, outro roubou-lhe dinheiro e um terceiro insultava-o sessão após a sessão.
Mas Winnicott era imperturbável, sabendo que isso fazia parte de uma jornada de regresso à saúde, longe da fadiga mortal que aflige esses pacientes.
Podemos agradecer a Winnicott por nos recordar que o prazer e o sentimento de autenticidade devem passar por estágios de egoísmo e por certo tipo de comportamentos. Simplesmente, não existe outra forma.
Nós temos que ser autênticos antes de podermos ser vantajosamente, um pouco “falsos” – e se nunca tivemos permissão, então a nossa ansiedade, a nossa depressão vão dar nota de que precisamos dar um passo atrás, e a terapia está lá para isso.
Traduzido/adaptado por Pedro Martins
a partir de: “The True and the False Self” – Alain de Botton
Comentários recentes