Ninguém pretende que isso aconteça, é claro, mas em qualquer lugar da nossa infância, a nossa trajectória em direcção à maturidade emocional foi sendo constrangida.
Mesmo que cuidem de nós com sensibilidade e carinho, não escapamos aos primeiros anos das nossas vidas sem sofrer algum tipo de ferimento psicológico – ao qual podemos chamar “ferida primordial”.
As causas da nossa ferida primordial raramente são dramáticas, mas o seu efeito é importante e duradouro.
A infância abre-nos ao dano emocional, em parte porque, ao contrário de outros seres vivos, o Homo sapiens tem um desenvolvimento muito longo e estruturalmente claustrofóbico.
Um potro está em pé trinta minutos depois de nascer. Aos dezoito anos já passámos cerca de 25 mil horas na companhia dos nossos pais.
Mesmo a baleia azul, o maior animal do planeta, é sexualmente madura e independente aos cinco anos de idade.
Mas nós somos mais demorados.
Pode levar um ano até darmos os nossos primeiros passos e dois para verbalizarmos uma frase completa.
São precisas duas décadas para sermos classificados como adultos.
E, entretanto, estamos à mercê dessa instituição altamente particular a que chamamos lar, com supervisores bastante peculiares: os nossos pais.
Ao longo dos Verões e Invernos da nossa infância fomos intimamente moldados pela maneira de ser daqueles que nos rodeiam.
Conhecemos as suas expressões favoritas, os seus hábitos, como reagem quando estão atrasados e a maneira como se dirigem a nós quando estão irritados.
Nós memorizamos as texturas dos tapetes e os cheiros dos armários.
Na meia-idade ainda podemos recordar o sabor de um biscoito que gostávamos de comer depois da escola.
Durante a nossa longa gestação, num sentido físico, estamos completamente à mercê dos nossos cuidadores.
Somos tão frágeis que podemos ser derrubados por um galho. O gato da família é como um tigre.
Precisamos de ajuda para atravessar a estrada, vestir o casaco e escrever o nome.
Mas a nossa vulnerabilidade é essencialmente emocional.
Tal é a nossa fragilidade na infância, que qualquer coisa que nos tenha acontecido é suficiente para nos afectar interiormente de forma profunda.
Não podemos começar a entender as nossas estranhas circunstâncias:
– Quem somos, de onde vêm os nossos sentimentos, por que estamos tristes ou furiosos, como os nossos pais se encaixam num esquema mais amplo e porque se comportam de certa forma.
Nós, necessariamente, tomamos o que as pessoas grandes que nos rodeiam dizem como uma verdade inquestionável.
Estamos condenados a estar enredados nas suas atitudes, ambições, medos e inclinações.
Sendo crianças, não temos como evitar isso. Nós somos muito frágeis. Se um pai nos gritar, as fundações da terra tremem.
Não podemos dizer que algumas das palavras ásperas não foram inteiramente justificadas, ou tiveram origem num dia complicado no trabalho ou são repercussões da própria infância do adulto.
Simplesmente sentimos como se um gigante todo-poderoso tenha decidido, por boas razões (ainda que desconhecidas) que devemos ser passados a ferro.
Nem podemos entender, quando um pai vai embora no fim-de-semana, ou se desloca para outro país, que não nos deixaram porque fizemos algo errado ou porque não merecemos o seu amor, mas porque nem sempre os adultos controlam os seus próprios destinos.
Se os pais estão na cozinha a falar num tom mais alto, pode parecer que essas duas pessoas se odeiam.
A altercação que as crianças ouvem pode ser sentida como catastrófica, como se tudo o que é seguro se estivesse a desintegrar.
Não há evidências em nenhum outro lado da compreensão da criança de que as discussões são uma parte normal dos relacionamentos.
E que um casal pode estar totalmente comprometido na relação ao longo da vida e, ao mesmo tempo, expressar com força o desejo de que o outro possa ir para o inferno.
As crianças são igualmente impotentes diante das várias teorias dos pais.
Elas não conseguem entender a resistência dos pais a juntarem-se com outras famílias da escola, ou a forma particular de se vestirem, ou porque se preocupam tanto com as limpezas e com os atrasos e como elas representam uma compreensão muito parcial das prioridades.
As crianças não têm emprego. Elas não podem ir para outro lugar. Elas não têm uma rede social alargada. Mesmo no seu melhor, a infância é uma espécie de prisão aberta.
Como resultado das peculiaridades desses primeiros anos, adquirimos a nossa maneira de ser.
Uma das características dos desequilíbrios que decorrem de feridas na infância é que não revelam de forma clara as suas origens.
As coisas dentro de nós começam a crescer em direcções estranhas.
Sentimos que não podemos confiar facilmente, ou temos que manter a sala limpa, ou ficamos incomodados com pessoas que levantam a voz.
Não é preciso que alguém faça algo particularmente chocante, ilegal, sinistro ou perverso para fazermos grandes distorções.
As causas da nossa ferida primordial raramente são dramáticas, mas o seu efeito é importante e duradouro.
Tal é a nossa fragilidade na infância, que qualquer coisa que nos tenha acontecido é suficiente para nos afectar interiormente de forma profunda.
Conhecemos bem a questão através das tragédias. Nos trágicos contos dos antigos gregos, não são os enormes erros e deslizamentos que desencadeiam o drama: são os erros mais ínfimos e inocentes.
A partir de pontos de partida aparentemente menores, as consequências terríveis desenrolam-se.
As nossas vidas emocionais são igualmente trágicas na estrutura. Todos à nossa volta podem estar a tentar fazer o melhor para nós como crianças e, no entanto, acabamos agora, como adultos, a tratar de grandes feridas que continuam a impedir-nos de ser o que poderíamos ser.
Por último, e de forma mais pungente, uma das características dos desequilíbrios que decorrem de feridas na infância é que não revelam de forma clara as suas origens, nem para as nossas próprias mentes, nem para o mundo em geral.
Não temos a certeza das razões porque fugimos tanto, ou porque ficamos chateados com tanta frequência, ou porque temos um ar orgulhoso e arrogante, ou nos subjugamos ou apegamos excessivamente às pessoas que amamos. Simplesmente, assumimos que é assim que somos.
Uma vez que as fontes dos nossos problemas nos escapam, não conseguimos compreender porque as pessoas são como são e assim perdemos uma fonte vital da simpatia.
Os nossos problemas começam com uma ferida que, se fosse conhecida e explicada de forma adequada, favoreceria, naturalmente, uma terna compreensão.
Mas porque as consequências que gera tendem a ser muito menos atraentes e faltam explicações, ficamos abertos ao desdém, ao sarcasmo e à auto-desvalorização.
A nossa ferida pode ter começado com um sentimento de invisibilidade, mas agora parece que somos apenas show-off.
Talvez tenha começado com uma decepção, mas agora queremos controlar tudo loucamente.
Talvez tenha começado com um bullying, um pai competitivo, mas agora parece que estamos simplesmente sem forças.
Nós tornamos as nossas vidas mais difíceis do que deveriam ser, porque insistimos em olhar para as pessoas, nós mesmos e os outros, como um mal e um meio, em vez de as vermos como vítimas, tal como nós, de uma história inicial extremamente complicada.
Traduzido/adaptado por Pedro Martins a partir de:
“Why We’re All Messed Up By Our Childhoods” – Alain de Botton
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